Fragmentos de almas e diários

Thais
5 min readMay 26, 2024

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Querido diário,

Tenho medo. Tenho medo de esquecer de você, o que significaria esquecer de mim. Ah, é isso mesmo, tenho medo de esquecer de mim. As cosias estão todas daquele jeito, me engolindo, grandes e ofensivas. O mundo dos homens. Eu vou sendo levada. Não quero me permitir ser levada. Quero continuar sendo minha. Não quero parar de te escrever, porque quando te escrevo eu me escrevo e aí eu me lembro de mim, entende? Bom, é isso: o mundo dos homens está me tomando toda, aquela guerra, lembra? A guerra invisível da vida. Será que só falo disso? Mas seria pior não falar e me entregar. Seria pior a entrega total do que o lento dilaceramento… Pois pelo menos no dilaceramento eu mantenho a minha dignidade e a minha honra. Não sei muito bem o que são essas coisas, mas sinto-as.

Na férias de 2022, no aniversário da minha mãe, o meu avô mandou uma mensagem. Ele está morto, então foi uma mensagem psicografada através da minha tia Marina. Eu gosto disso pois me lembra que talvez seja verdade tudo e talvez as lutas e guerras todas façam sentido, mas esse não é o assunto de hoje. Eis o que ele falou para mim:

(…), a nossa pequena Thais, que nunca permita que as ilusões materiais superem as verdades espirituais. Que seu trabalho sempre se frutifique em bênçãos. (…)

Bom, as ilusões materiais e tudo. É engraçado mas as maiores delas não são, de fato, materiais, digo, não são concretas. São o ego, a ganância, a vaidade, isso tudo… Estou sendo muito ocidental com esse papo? Hahaahahahaa eu odeio o mundo dos homens, odeio as discussões acadêmicas dos homens. Digo homens mas quero dizer humanos, mas não quero exatamente dizer humanos. Quero dizer…..os humanos da roda gigante… Os humanos dos computadores e dinheiros e empresas e redes sociais e Academias e tudo!!! Eu os odeio, a todos todos. Mas ao mesmo tempo eu sei que não os odeio pois são todos como eu, e sofrem como eu, e são profundos como eu. Mas eu odeio a carcaça que vestimos todos. Eu odeio o mundo que construímos, as discussões que nos rodeiam, as imagens que criamos e alimentamos todos os dias…. É isso que eu odeio, e eu estou cheia dessas coisas. É por isso que disse que tenho medo de esquecer de mim. Não são só as redes sociais, é todo um modo de vida e de pensamento: viver para acumular: mesmo que seja “conhecimento”, que sejam seguidores, móveis, livros lidos, viver para limpar a casa, viver para guardar dinheiro para o momento em que eu for gastar, viver para comprar coisas, viver para alimentar meu ego, viver para alimentar minha imagem, viver para vender livros, para publicar artigos, para alimentar o lattes, para corrigir redações sem criar laços com as crianças que as escreveram. Eu quero voltar a abandonar tudo, sinto que eu abandonei e as coisas começaram a voltar até mim, como pequenos diabinhos pegajosos, como gosmas do inferno. Ah o inferno está em todos os lugares e ele é pegajoso. É por isso que estou sempre nesse sofrimento, estou sempre suja de inferno, ele está em tudo. Estou sendo muito pessimista? Eu sei que estou, mas não porque sou pessimista e sim porque estou fazendo minha sessão de desobsessão, de expurgo. Estou me limpando dos infernos e para isso tenho que dizê-los todos. Eu tenho tanto medo das pessoas. Eu tenho medo do ódio, tenho medo de que me diminuam, tenho medo da raiva delas. Tenho medo principalmente do riso, das lentes ridicularizantes com que podem me ver. Tenho medo de não ser amada? Não sei… Não sei se quero ser amada pelas pessoas, apenas por aquelas que eu amo. Tenho medo de…. tenho medo de não ser respeitada, tenho medo de perder espaço, de me empurrarem para fora do mundo. Estou falando sobre a guerra dos egos. Todos estão tão desesperados para se autoafirmarem e assim, explícita ou muito implicitamente (e na grande maioria das vezes, inconscientemente), vamos uns pisando nos rostos dos outros, porque só se pode se autoafirmar se você estiver acima da superfície de bilhões de rostos, e como fazer isso senão pisando neles? Então estamos todos nos pisando e é disso que eu tenho medo, tenho medo de que pisem no meu rosto, e tenho medo também de me entregar ao jogo e de pisar nos rostos dos outros. Como fazemos para interromper? Como fazemos? Será que todos os meus problemas se resumem a isso? Será que eu não consigo ter paz e nem tempo porque gasto todo meu tempo preocupada com minha autoafirmação? E assim eu tenho apenas a afirmação porque a minha pessoa mesmo de fato não existe mais, existe apenas a carcaça, a imagem afirmada, a alma vai sendo diariamente jogada fora. É claro que podemos sempre recuperá-la, mas precisamos estar tão atentos. Sim é tudo sempre sobre atenção. Atenção ao que você está fazendo da vida, Thais. Atenção àquilo a que você se entrega. Eu acho que a escrita é como recuperar a alma. Eu perco ela ao andar pelo mundo dos homens e viver dentro dele, e a escrita é como um portal em que eu enfio a mão e busco minha alma de volta. Como ela veio parar aqui? Se ela foi perdida lá fora no mundo? É uma magia de deus? É ele mudando as coisas de lugar para que eu possa sobreviver? Como? Como a alma escapa enquanto ando nas ruas e entra nos bueiros e escorre pelos ralos e esgotos e depois a encontro aqui? O que acontece nesse teletransporte? Será que a alma que eu perdi se foi pra sempre e essa é uma nova? Eu não sei se gosto dessa ideia, gosto da familiaridade de minha alma, gosto da familiaridade que encontro na escrita. Então o que é? A minha alma tem poder de teletransporte? O mundo dos bueiros é o mesmo mundo da escrita? Eu acho que é isso. O mundo dos bueiros é o mesmo da escrita. A escrita nos leva até o subsolo para buscar ali a nossa alma, na nascente do inferno. Então a escrita é uma passagem para o inferno? Mas às vezes eu sinto que ela também é uma passagem para o céu, para um vislumbre dele. Então? A escrita… Ela é…nosso anjo da guarda? Eu acho que não consigo responder, mas sei que preciso sempre voltar.

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Thais

Aqui jaz o que escrevo livre de qualidade e de uma parte de mim.