A noite da cidade grande e eu!

Thais
3 min readJun 6, 2024

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A noite da cidade grande, tempestade mercuriosa transdimensional, traz elementos férreos e pesos do espírito e leva embora algo que não sei exatamente o que é, mas que deixa um vácuo de natureza quase bélica. A noite da cidade grande é de uma belicosidade espiritual tão transtornada e desnorteadora como se o breu e as luzes e prédios e carros e multidões e outdoors fossem as ondas revoltas e sem direção de um mar extraterrestre, de algum planeta extragaláctico, um mar em profunda crise mergulhado dentro da imensidão do mundo.

Esse breu que é o pano de fundo das luzes frenéticas e alucinadas, o breu me puxa, me seduz, mas como ir até ele? Como chego até o breu? E as luzes dos postes e carros, e os ônibus como baleias gigantes cibernéticas, eu tenho certeza que são baleias, eu as ouço cantando dentro desse mar simultaneamente escuro e iluminado, simultaneamente repleto de multidões e solidões. Mas as luzes! O que as luzes me fazem sentir? Se o breu me seduz, as luzes me assustam, me paralisam em secreta e extasiada catatonia. O conjunto de tudo me chama e me paralisa ao mesmo tempo, e então meu coração se transforma num paradoxo que pulsa carnívoro, canibal, devorado, vítima e assassino, morte e vida, e é bom! Não sei se isso está claro, mas é tudo tão bom, é mais que bom, é intenso, é ocular, meu espírito inteiro se concentra todo nas retinas, e ali eu fico tão densa que é como se meus olhos tivessem a gravidade de uma estrela maior que o sol, meu sangue corre tão rápido como se minhas hemácias fossem milhões de crianças felizes brincando, de beija-flores voando ligeiríssimos pelo jardim.

A cidade grande à noite! Eu me sinto tão enfeitiçada, como se jamais fosse ser eu mesma novamente. Ou como se o eu mesma não existisse, como se só existisse o eu-tudo-nada. Eu sou tudo e sou nada dentro da noite da cidade grande. Isso quando ando sozinha, é claro. E quando na hora do rush as multidões correm juntas atravessando as avenidas de larguras infinitas, e quando os carros buzinam e os ônibus fazem seu canto de baleia.

E então eu os olho mais intensamente, eu mudo meu foco para os humanos que andam quase correndo, para os humanos que esperam os ônibus-baleias. São tantos tantos tantos e cada um deles tem um coração pulsante e uma vida enorme e múltipla no passado e no futuro, cada um deles sente amor, cada um deles já chorou sozinho e ainda vai chorar algumas vezes, cada um deles está cansado, cada um está correndo para atravessar a rua mas na verdade mesmo lá dentro está correndo atrás de descobrir qual é o maldito sentido da vida! Isso é bom, por favor não ache que é ruim ou triste. Estamos todos perdidos juntos, estamos todos dentro da selvageria alucinada da cidade grande, estamos todos com pressa e cansados mas estamos todos resistindo e insistindo na felicidade e no amor apesar de tudo. Estamos todos consciente ou inconscientemente nessa busca eterna e ingrata mas maravilhosa pelo sentido da vida, pelo sentido do mundo. Estamos todos procurando pela magia e todos a encontramos quando olhamos no espelho, eu sei que encontramos, mesmo aqueles que se odeiam encontram a magia no espelho porque ela não está no fato de sermos bonitos ou feios ou interessantes ou qualquer coisa assim, está no fato de que existimos e sabemos que existimos, uma combinação tão grave e importante. Existimos e sabemos disso! É o asfalto da vida, é o piso de onde podemos pegar impulso para correr, saltar, brincar, cair, rastejar. As pessoas correm sobre o asfalto que brilha em infinitos diamantes sob a luz dos postes e eu penso, existimos e sabemos disso. É tão incrível que sejamos todos tão absolutamente diferentes uns dos outros, mas que tenhamos, apesar de tudo, algo em comum de tal ordem, de tal grandeza, de tal absurdidade: existimos e sabemos que existimos. O quão absurdo é isso? E então estamos todos juntos com as solas dos pés no asfalto, e então em pelo menos uma mísera coisa somos iguais e não estamos mais sozinhos.

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Thais

Aqui jaz o que escrevo livre de qualidade e de uma parte de mim.