Amor à morte (fragmentos de diário)

Thais
4 min readApr 20, 2024

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Querido diário,

Aconteceu algo estonteante, esplêndido e decisivo: eu vou morrer!!!!

Digo, eu lembrei que vou morrer algum dia. Estávamos assistindo Midnight gospel, eu e bruno, e enfim, é um desenho animado psicodélico e espirituoso e que falou sobre a importância de pensarmos na morte e de pararmos de fugir dela. Na verdade, eu não me encaixo tanto nisso, porque sempre pensei na morte. Eu sempre tive medo de morrer e medo das pessoas que eu amo morrerem. Não entendo, então, que tipo de chave virou dentro de mim para começar a enxergar a morte de forma tão incrível. Não é que eu enxergue a morte de forma incrível, é que eu percebo agora o quão incrível é o fato de que a morte vá chegar um dia, mas ainda não tenha chegado. É tão óbvio. Falamos isso sempre mas é um daqueles clichês que de tão repetidos começam a se acomodar e a virar um carpete sujo e pisoteado para o qual nunca olhamos direito. Tem uma cena em Hannibal em que ele se emociona numa ópera e fala sobre isso, as coisas só são lindas, a arte só é deslumbrante, porque tudo é finito e mortal, e assim as coisas têm um valor e uma importância graves demais, grandes demais. Então ontem eu e Bruno não conseguíamos dormir porque tinha algum vizinho arrombado dando uma festa com músicas horríveis e muito altas, e ficamos conversando. E ele disse tantas coisas incríveis. Desde pequeno, desde criancinha, ele já era um espírito tão tão forte. Ele tem um caráter tão sólido. Enfim, eu passei a valorizá-lo mais do que já valorizava antes, porque sei que ambos vamos morrer! Não fico triste ao pensar nisso porque eu já sabia que todos iam morrer, então não é triste porque não é uma informação nova nem nada, é apenas o curso da natureza. Estamos num fluxo incessante e precisamos aceitar que estamos no Rio e que fazemos parte dele, não podemos tentar nos agarrar aos galhos secos da margem para evitar a correnteza, porque nós somos a própria correnteza. Estou sendo boba? Sinto que não consigo colocar em palavras a grandiosidade que esses pensamentos assumiram em mim. Antes, eu já devo até ter escrito aqui, quer dizer, antes não, mas eu sou, no geral, muito ansiosa. E mesmo em momentos bons eu nunca consigo aproveitar e ser feliz, pois estou tensa e preocupada, e pensando no que tem que ser feito, e pensando que tenho que correr atrás das coisas e ser produtiva e todas essas merdas completamente ridículas e absurdas. E eu sinto finalmente que consigo estar no presente e aproveitar um bom momento, e isso é graças à morte!!!!! Digo, se estou sentindo uma brisa enquanto ando pela rua indo à algum lugar, normalmente eu estou assim: tenho que chegar ali logo tenho que chegar ali logo estou perdendo cerca de 20 minutos do meu tempo de produtividade para chegar ali naquele lugar e resolver aquela coisa e depois mais 20 minutos até chegar em casa para poder resolver logo as outras coisas e ser produtiva e estudar e traduzir e tentar escrever (nunca consigo) e arrumar a casa e fazer duolinguo, e trabalhar e etc etc etc. Mas se eu estou andando indo a algum lugar sentindo uma brisa, e nisso eu me lembro: Vou morrer um dia. Não estarei viva pra sempre. De repente a brisa ela parece ter vindo direto do paraíso me encontrar. E os meus pulmões! Eu amo tanto meus pulmões e amo tanto o ar da Terra que posso respirar. Tanto os pulmões quanto a atmosfera não estão lá essas coisas, mas eu os amo mesmo assim, porque eles existem e eu existo também e posso senti-los, e é incrível. Lembrando da morte, eu sou feliz mesmo não fazendo nadinha de nada. Apenas respirando e olhando para o mundo, e vendo as coisas que existem e as coisas que vivem. Viver é como se fosse uma enorme magia, é como se estivéssemos magicamente sendo transplantados da vida ordinária para dentro de um conto de fadas. Estar vivo é um grande conto de fadas e nós estamos vivendo isso, como naquele filme da xuxa em que eles entram dentro daquele livro. Imagina se algo assim acontece com você e você esquece que é incrível e passa a viver dentro daquele livro do conto de fadas de forma triste, monótona, ansiosa? É um grande ultrage! Morte morte eu te amo muito e eu amo principalmente a sua ausência. Obrigada por existir e também por não existir ainda. Vida vida eu te amo tanto e amo mais ainda quando penso em sua ausência futura. Obrigada por existir e por um dia não existir mais, porque isso te faz tão forte. Se Deus existir e tiver planejado e criado todos esses paradoxos absolutamente perfeitos, cara ele é realmente um gênio, né?

A partir de agora eu quero lembrar todos os dias sempre que acordar: vou morrer. E assim eu vou viver tanto.

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Thais

Aqui jaz o que escrevo livre de qualidade e de uma parte de mim.