Amor à vida (fragmentos de diário)

Thais
4 min readApr 24, 2024

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Oiiiii querido diário tudo bem???

Eu estava voltando para casa do nosso clube de escrita, eu Bia e Sabrina, e depois fui ao mercado e depois andei para casa e cheguei agorinha mesmo, já era de noite quando eu estava voltando e estava pensando sobre o fato de que vou morrer um dia e tudo mais. E aí eu comecei a ver as coisas como vi quando era criança!!!!! Na verdade, talvez eu também ainda as visse um pouco assim na adolescência ou na pré-adolescência, enfim. As coisas bonitas. As luzes. A água suja de esgoto correndo pela beirada das calçadas, iluminada pela luz laranja dos postes da rua. As cores estavam tão tão fortes e contrastantes, o laranja fluorescente brilhando no preto da água corrente sobre o preto do asfalto, e então eu entrei naquele estado! Aquele estado especial de contemplação. As palavras são tão insuficientes. Eu nunca achei que me sentiria tão feliz ao perceber novamente a insuficiência das palavras, porque antes isso me frustrava tanto, mas hoje eu fiquei feliz porque se elas são insuficientes significa que o mundo voltou a ser muita coisa, significa que o meu mundo voltou a não caber nelas!!!!!! O mundo tem que ser além!!!! Se o nosso mundo cabe todo nas palavras, se nos sentimos satisfeitos com elas, então está errado. Não podemos estar satisfeitos, temos que estar sempre inquietos e desesperados tentando transformar em algo palatável e compreensível a incompreensibilidade do esplendor de tudo. Tudo é esplêndido e mudo e não-palatável. O mundo não pode ser digerido, esse mundo especial que eu reencontrei, que é o mundo de verdade que eu havia esquecido. Esse mundo, nós não conseguimos passar por ele, não conseguimos ingerir as coisas e evacuá-las, as coisas, essas belezas, essas magias do não-mágico, elas ficam sendo ruminadas, ficam no estômago e não conseguimos fazer nada com elas: é impossível escrevê-las, pintá-las, musicalizá-las, a beleza não cabe, então ela fica indo e voltando do estômago para a boca, procurando um lugar dentro de nós, e nós não sabemos o que fazer porque é extraterrestre demais, sendo que é terrestre demais, mas não da nossa Terra, de outra Terra, da Terra embaixo de nós e em nós, e não da Terra dos Homens. Você está entendendo o quão importantes as coisas são? Pois bem, tudo isso para dizer que eu estava andando para casa e parei para cheirar uma árvore. Eu não parei para pensar quase nada, eu só cheirei, e talvez não tenha sentido nada porque cheirei bem rápido por medo de alguém me ver e me achar esquisita, mas talvez eu tenha sentido um cheiro sutil lá no fundinho e foi tão íntimo, foi como se eu e a natureza déssemos as mãos escondidas, numa paixão de infância. E aí eu continuei subindo o morro, e não é querendo romantizar a pobreza nem nada, a pobreza ainda é uma merda, mas eu percebi que a minha favela é tão tão linda. Porque tocava um samba no bar que estava abrindo enquanto a senhora colocava as cadeiras para fora, e na calçada estavam sentadas o que eu supus serem mãe e filha, as duas de tranças, bem parecidas, e a filha abraçava a mãe por trás, com as mãos em volta do pescoço. Para elas provavelmente não foi nada demais, um gesto comum e talvez até diário, mas eu vi tanto tanto amor e me senti tão feliz por elas, e olhei para a água suja que corria e ela brilhava tanto, as cores, as cores do mundo elas contrastam demais umas com as outras, hoje a bia escreveu algo no clube sobre cores aquareladas do mundo, mas eu não acho que as cores do mundo são aquareladas porque a aquarela é muito diluída. Eu acho que as cores do mundo elas são… elas são mercuriosas, porque o mercúrio é denso e pesado e forte, um líquido furioso que não deixa passar nada, ele não tem a mínima transparência. As cores são tão vívidas e densas, mesmo as escuras ou as claras demais, todas elas são, como se tivessem super poderes. E as luzes dos postes, eu as amo tanto, é impossível tentar descrever o quão lindas elas são, eu acabei de perceber que vejo os postes como poetas. Os verdadeiros poetas são os postes acesos à noite, sim. Nós? Apenas tentamos, somos falsos poetas tentando nos enganar, e os postes são os poetas reais, como se fossem jesus e nós meros pastores. E a Lua estava bem cheia e nítida lá no alto, perfeitamente redonda e esburacada. Se ela não tivesse buracos e crateras provavelmente não seria tão linda, ela é como o asfalto.E o asfalto brilhava sob a luz dos postes e os brilhos de asfalto eram estrelas de uma outra dimensão. Eu cheguei em casa já com tanta vontade de escrever, e o bruno veio me abraçar muito feliz porque cheguei, nós sempre corremos até a porta com toda a felicidade do mundo quando o outro chega em casa, mesmo depois de tanto tempo. E eu percebi, veja bem, eu percebi, não… Eu senti, eu senti felicidade plena. Não que eu não a sentisse antes, mas não era plena. Era felicidade e culpa, felicidade e preocupação, felicidade e ansiedade, ela sempre lutava contra essas outras coisas por um lugar dentro de mim. E hoje eu senti felicidade completa, me enchendo inteira, enchendo meu corpo todo como um copo até a boca, e foi aí então que senti um medo muito melancólico, aquele medo de sentir tudo tão bem e com isso vir a premonição da tristeza ou da desgraça. Mas já está passando, porque eu lembrei que vou morrer algum dia então foda-se se uma hora chegar a tristeza, não é? Eu preciso ser feliz, eu preciso viver o presente, é urgência primeira porque eu vou morrer, ora bolas. É o melhor lembrete do mundo. E então eu estou feliz e então o mundo é lindo. Simples simples. Que loucura.

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Thais

Aqui jaz o que escrevo livre de qualidade e de uma parte de mim.