Dentro do coração das trevas

Thais
10 min readMay 6, 2024

--

Ele lida tão bem com os próprios traumas que às vezes até esqueço que tem tantos deles.

Ontem à noite estávamos assistindo O bandido da luz vermelha, e naturalmente esquecemos de terminar o filme pois começamos a falar sobre bandidos, punitivismo e a complexidade humana. Às vezes ele me deixa espiar um pouco pela fechadura e tenho alguns vislumbres de um passado que é uma terra estranha para mim. Ele disse: crescer pobre é sempre ter a sensação que você não deveria estar nos lugares, que não querem que você exista, e isso porque sou branco, imagina se não fosse. E aí depois você cresce e descobre que secretamente eles não só querem que você exista mas que precisam disso, porque se não tiver uma multidão de pobres desesperados se agarrando a cordas de arame farpado para sobreviver, não conseguem empregar as pessoas por uma merreca, falando: se você não quiser tem aquela multidão de miseráveis desesperados que vai querer, você não me é necessário. E assim descobrimos que nós todos somos extremamente necessários a eles.

Bom, eu acho que vi isso em Hegel e é uma estupidez pensar nesse estúpido do Hegel quando tenho alguém muito sábio na minha frente todos os dias, conversando comigo, um sábio com uma alma de três mil anos e um coração de criança, um coração tão puro que parece que acabou de nascer, e que está nascendo a cada segundo, um coração em parto constante.

E então ele continuou, me colocou dentro do trem, um pequeno trenzinho em que às vezes eu entro para viajar dentro desse mundo passado, dentro desse outro Brasil que eu nunca vivi, que eu vi muitas vezes, sim, mas no qual nunca mergulhei, no qual eu não cresci. E não é apenas um Brasil mas também uma casa pequena e única dentro dele: a casa em que ele cresceu. Ele me conta de quando era bem pequeno, talvez com uns seis anos, quando ainda estava conhecendo aquele que viria a chamar de pai, logo depois de ser abandonado pelo pai biológico. Então esse ainda-não-pai-mas-quase-pai parecia um homem legal, e uma vez em que foi visita-lo mostrou-lhe um bolo muito grosso de notas de cem reais, que foi o dinheiro com que construíram a casa dentro da qual nosso trenzinho está passando agora, a casa em que ele cresceu. Mais tarde, seu pai (agora já se tornou pai) contou que aquele dinheiro era do tráfico, que inclusive carregava o sangue de pessoas mortas por ele próprio. Mesmo que na infância passasse fome, e talvez continuasse passando se não tivesse feito as escolhas que fez, o pai não se orgulha disso, nunca se orgulhou. Inclusive contou ao menino que todos os amigos do tráfico se drogavam para ter coragem de matar, menos ele. “Se eu precisasse me drogar pra ter coragem de fazer aquilo, é porque no fundo sabia que aquela pessoa não devia morrer.” Ele queria fazer tudo sóbrio, encarando de olhos limpos e lúcidos o próprio pecado, uma espécie de honra, não tentar esconder a própria crueldade de si mesmo, não turvar a imagem medonha no espelho, esse era seu castigo e ele devia enfrenta-lo. Era como uma redoma em que ele guardava o caráter intacto que não se deixava sujar pelo esgoto ao redor. Ao casar com a mãe do menino, graças a Deus ou a Exu, ela disse: você larga tudo e vende as armas ou então nada feito. E então ele largou tudo e vendeu as armas, e assim se tornou pai. E assim um belo dia, abaixou-se de cócoras, assim como quando falamos com as crianças, abaixou-se e falou para o menino: você se importaria de começar a me chamar de pai? Eu quero te apresentar para os meus amigos, quero dizer que você é meu filho. Ah, sim, e assim ele virou pai. Uma palavra tão forte, não é? Talvez não seja para todos, mas eu sei que para esses dois ela é forte como uma arma jogada no lixo, como uma casa de tijolos e cimento, como a redenção.

Depois, tem a mãe. A mãe, a mãe… A mãe é uma mulher tão funda. Uma mulher gigantesca mas que foi uma vez após a outra, após outra, após outra, encolhida pelo mundo, enterrada. Também passava fome na infância, e apanhava muito do pai alcoólatra. Essa é clássica, não? Quando fez doze anos foi abusada. Quando fez quatorze, foi abusada mais uma vez e assim nasceu o nosso querido menino. Alguns anos depois, foi abusada mais uma vez, e assim nasceu o irmão mais novo. Ela tem uma doença. Aquela doença maldita, que inferniza todos ao redor e principalmente, acima de tudo, inferniza o coração e a mente do próprio doente. Se chama bordeline. Por coincidência, é a mesma doença que a da minha madrasta, que também foi abusada e também apanhou do pai alcoólatra. Há mulheres que parecem carregar mundos inteiros dentro de si, há mulheres ao lado das quais esse mundo gigante não é nada, nada. Então, apesar de ter um coração quente e bom, ela é de tempos em tempos engolida pela fúria, pela loucura, pelo medo do abandono, pela insensatez, pela desesperança e pelo desespero. Depois disso é vomitada de volta à realidade, um pouco mais mastigada do que antes, então ela é uma mulher terrivelmente mastigada por si mesma, dilacerada. O menino cresceu apanhando muito, apanhando como se fosse adulto, desde que se entende por gente. Levando socos, chutes e chinelos na cara, me dói tanto imaginar, ele é tão bom e puro. Por muito tempo ele não foi doce como é hoje, na adolescência era tomado pelo ódio da mãe e do mundo, pelo ódio da vida. Então ele me diz: se eu não tivesse a sorte de tirar notas muito boas na escola e com isso imaginar uma vida lá na frente em que eu faria uma faculdade e teria uma família e uma casa longe daquilo tudo, quem poderia garantir que eu não ia terminar no mesmo lugar do meu pai antes de me conhecer? Quem poderia garantir que eu não estaria agora mesmo matando gente? Com isso você pode perceber um pouco da humildade que há aqui dentro desse mundo. Ele tem dificuldade em colocar essas palavras juntas: “eu” e “mérito”. Todas as vitórias para ele foram pura sorte.

Agora eu sou a casa e a família que ele imaginou para si, e eu o salvava há anos sem mesmo desconfiar, sem mesmo estar me esforçando pra isso. Na verdade, o fato de ele sonhar comigo foi o que o salvou, e eu gosto de pensar que antes de nos conhecermos ele já estava sonhando comigo, já estávamos ligados de alguma forma. Além disso, a inteligência dele o salvou, mas acredito que também o coração, que sempre foi bom mesmo que antes estivesse enterrado por baixo da raiva. Ele diz que ia para a escola e para o futebol da rua procurando motivos para brigar, para poder bater nas pessoas e descontar uma raiva que guardava dentro de si e que não conseguia entender. Tinha que limpar a casa inteira desde os 7 anos de idade. Quando a mãe estava em surto, ele se esforçava muito, passava horas e horas na faxina limpando cada cantinho, passava vassoura, depois o pano, e depois a vassoura de novo só para garantir (ele faz isso até hoje). Mas não havia jeito, ele apanharia do mesmo jeito, porque ela também tinha uma raiva que não conseguia entender e que precisava sair de alguma forma. Então falava: não está bom, você não limpou direito. E batia e batia e batia. No dia seguinte, ele limpava ainda mais, por mais tempo, limpava tudo três vezes e dizia, esperançoso: hoje não tem como, hoje eu tenho certeza que ela vai gostar, eu acho que a casa realmente ficou bem limpa. E ela chegava, consumida pela raiva, e dizia: não está bom, você não limpou direito. E batia e batia e batia. Hoje, ele não consegue ficar satisfeito com nada do que faz, ele me diz: eu faço algo e fico olhando aquilo que eu fiz, e eu não faço ideia se está bom ou ruim. Talvez por isso também tenha sido tão bom na escola e tenha conseguido realizar o sonho de entrar na faculdade, mesmo um pouco mais velho que a maioria: é que a escola não era uma chatice como para a maioria das crianças, era seu refúgio, era quando podia tirar férias de estar em casa, então ele amava. Quando fez uns doze ou treze anos começou a trabalhar de ajudante de pedreiro com o pai. (Quando largou o tráfico, o pai virou pedreiro, a casa em que o menino cresceu foi a primeira casa que o pai construiu). Então eles iam juntos trabalhar e ele gostava muito, conversavam e tudo. Disse que às vezes o pai o levava mesmo sem ter trabalho para os dois, e ele ficava lá sentado sem fazer nada, bravo por ter ido à toa, mas mais tarde ele entendeu que muitas vezes o pai o levava porque gostava da companhia. Quando fez uns dezessete, trabalhou de garçom, eu suspeito que foi aí que descobriu que talvez fosse um pouco bonito, porque as pessoas sempre tentavam ficar com ele no bar, até mesmo alguns casais (isso ele me contou depois de muito tempo). Mas recebia muito pouco dinheiro e muitos desaforos de clientes que se acham donos do mundo porque podem pagar pelas coisas. Com dezoito anos começou a trabalhar como operário na companhia siderúrgica nacional. O trabalho era tão ruim quanto o bar, mas pagava um pouco mais. Ele fazia o que chamam de “zero hora”, que é trabalhar a madrugada inteira durante doze horas seguidas. Chegava em casa, dormia durante o dia, e à tarde ia estudar. No emprego, às vezes dava para dormir por alguns minutos, nos intervalos de algum carregamento ou algo assim (eu nunca entendi muito bem o que faziam, só sei que lá dentro fazia cerca de setenta graus, que usavam roupas pesadas e máscaras de proteção, que havia fogo e coisas de metal terrivelmente pesadas, quando ele me conta eu imagino uma espécie de pequeno inferno dantesco contemporâneo), bom, nos intervalos eles colocavam caixas de papelão abertas no chão, deitavam um pouco, e tinham que ignorar as baratas que passavam pelo corpo, porque se fossem matar ou expulsar todas não conseguiriam dormir.

Ele tem um tio que está preso por tráfico e homicídio e sei lá mais quantas coisas, e também tem um primo que mora na rua, que esses dias quase morreu com uma facada no pescoço, e um irmão que quase foi preso algumas vezes, um irmão que ele ama muito, que deseja ardentemente poder salvar (e que eu acho que de fato vai salvar, não de uma forma mirabolante mas apenas pelo exemplo e pelo amor). Ele tem outro tio que morreu, esse eu nunca soube como. Além disso, ele tem uma avó que todo mundo quer matar e que quer matar todo mundo. Basicamente, há muita gente em derrocada ao seu redor, e ele não só se mantém em pé como também serve de pilar para muitas dessas pessoas. É curioso, mas ao crescer ele virou o porto seguro da mãe, acho que ela também sente o que eu sinto, essa solidez interna, mesmo que os traumas o tenham quebrado em alguns lugares difíceis, mas há a solidez do coração que renasce todo dia e por isso é sempre muito forte, muito digno e muito duro, às vezes até duro demais, principalmente consigo mesmo. Às vezes eu me preocupo com isso dele ser um pilar que sustenta tantas pessoas e tantos sonhos e que carrega tantos traumas, mas é um homem realmente bem forte e grande, dentro dele cabe muita coisa, e inclusive é chocante, mas mesmo tendo que fazer caber tudo isso dentro de si aquilo que ele mais tem é felicidade. Eu gosto de usá-lo como exemplo também, porque às vezes deixo de ser feliz por tão pouco. Então ele me lembra todo dia que a felicidade é preciosa demais para a deixarmos passar assim, temos que aproveitar cada gotinha. Eu estou realizando o sonho que ele teve a vida toda, só ao estar aqui existindo na mesma casa, é tão louco.

Eu tenho consciência de que sou uma das primeiras coisas boas que acontecem com ele, sei que é a primeira vez na vida em que ele é realmente feliz, e isso deveria fazê-lo sentir o impulso de querer fazer tudo para me manter aqui, ao seu lado, custe o que custar, agarrar essa felicidade e apertá-la com força para jamais perdê-la. Não sei se o impulso existe, mas se existir ele sempre se recusou a obedecê-lo. Ele sempre foi intransigente no ato de amar sem possuir.

Eu sonhava muito com um amor também, mas nós mulheres somos diferentes, não é? Quando a gente percebe que sonhar com um amor vai nos destruir, passamos a sonhar com a solidão. E então eu sonhei muito com o amor e depois sonhei muito com a solidão, mas estar com ele é como se eu tivesse o melhor dos dois: o aconchego e a quentura do amor e a liberdade da solidão. Eu sou eu mesma, fico à vontade, eu me sinto plena e absolutamente, maravilhosamente livre. O nosso gatinho é assim também, o Dali: ele sempre foi perdidamente apaixonado pela liberdade, ele está o tempo todo querendo ser livre. E quando finalmente o deixamos ir, ele passeia e volta em pouco tempo ou às vezes fica deitado do lado de fora, ainda perto de nós. Ele não quer ir embora, ele só quer sentir que possui a liberdade de ir para onde quiser, mesmo que esse onde seja o embora. E assim, por conta de sempre poder ir embora, ele nunca vai. É assim que eu me sinto: com esse homem eu sou tão livre, tão sem amarras, posso ir a qualquer lugar e é exatamente por isso que quero estar aqui.

--

--

Thais

Aqui jaz o que escrevo livre de qualidade e de uma parte de mim.